quarta-feira, outubro 05, 2005

atos

então é transpassado
outro laço falho em um seio
eterno abraço vermelho,
de um vestido por vezes jogado
passos certos no zelo
e pernas perdendo compasso.

depois, olho vidrado
mãos se encontrando
corpo grudado, inundado
mentiras, desconcerto, erro
novo assunto, olhar mudado
não vê o outro, se esqueceu

enfim, já não sabe, perdeu
mudou a religião, ou...
tornou-se ateu
destruida a súbita vontade vermelha,
perdeu as letras, o veio, a rima
olhou à frente, pra voltar
e quis mais o seu.

sábado, agosto 06, 2005

teimosia

eu quero tuas formas
quero sim
vem, quero a desforra
desfalecimento de um corpo exausto
que eu só maltrato e queixo-te
na falta dum agrado
um longo desprezo
exijo, peço
o total esquecimento
mas sempre penso
repito, refaço, reflito,
sem forma nem conceito
muito além de dois corpos
amo-te todos os sentimentos.

***

O dia continua ruim, mas uma série de insights salvaram um ensaio bem abatido (e agora quase completo). E sim, o frio vem vindo.

Cinismo

Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filófoso lendário.

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!

E eu hei-de, então, soltar uma risada...

Cesário Verde
...

Verdade que poucos são os dias muito bons. Mas hoje é covardia. Péssimo sono, dor de garganta, ensaio pela metade (mas logo acabo)... Prometo soltar uma risada à meia-noite.
Pronto, está decretada minha indignação ao dia 6 de agosto de 2005. E pelo o que eu me lembro (mentira, porque esqueci), alguém está de aniversário. Bem, não sou eu, nem é você (pretenção que serei lido - vou, né, Mi?), então pouco importa.
São quase 15 horas, pessimismo?
Também cisnismo.

sábado, junho 11, 2005

Os Desertores

"À esquerda, o mar azul-cobalto aproximava-se da terra, esbranquiçado, paralelo e infinito. Berenice deixou ficar para trás o 'Muxaxo' e, sob o fogo da areia, inconsciente e ansiosa, desceu sem travar a estrada aberta à sua frente, sem travar mergulhou na pontezinha escura e húmida que lhe apareceu sombreada de verde e sentiu a superfície vermelha do capot aspirá-la irresistivelmente pela subida cinzenta. 'Talvez venha a esquecer esta corrida, mas César jamais a esquecerá'. Este pensamento afligiu-a. Era tão estranha aquela situação que esquecê-la só poderia significar ter-se a sua vida tornado uma aventura sem fim. Não, Berenice também nunca deixaria desaparecer da memória o que estava a passar-se. Mas para ele era diferente: para ele era um mundo novo."


Os Desertores. Livro de Augusto Abelaira. Gosto demais.

quinta-feira, maio 26, 2005

inverno

será preciso dormir por quanto tempo?
esquecer o dia que parece mil
nesta tua estrada tudo é tão comprido
assim tão de repente e porque és tão exata
mas decerto acalmo ao te ver contente
quieto, me ponho acesso, te lembro
te procuro em minhas mãos, não te encontro
lamento o meio desconsolo, busco teu seio
então me recorto e te sobreponho
e és meu espelho, refletes saudades
e neste frio não programado, surpreendente
a luz se apaga e contigo sonho
e o dias não passam, num inverno meu não da gente

depois deste inverno,
segura minha mão?

Ficas (numa semana de pensamentos longe, lá no sul)

domingo, maio 08, 2005

jogos

gosto da tua meninice
de deixar de lado as coisas importantes
quando te apegas a um brinquedo qualquer
lembrando-me ainda que és tão inocente
que vives tão a leste de meu país
tão oeste sou, já me pus tantas vezes
enquanto nasces a cada dia, sem dormir
quem sabe sem despertar, vives reticente
em sonhos que não terminam
...
sim, medo eu tenho, de descobrir
que quem há de acordar
é o menino, deslumbrado
ao ver que te apegas a brinquedos
que não nos pertencem.

Ficas (algum tempo atrás)

*******
Querendo fazer sombra (ou talvez diminuir a culpa) no que escrevo, indico-lhes (com pretensão de que sejas plural):

A bela e pura

A bela e pura palavra Poesia
Tanto pelos caminhos se arrastou
Que alta noite a encontrei perdida
Num bordel onde um morto a assassinou.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar novo (1958)

sexta-feira, abril 29, 2005

Formosinha de Elvas

Elvas é uma charmosa cidadezinha lusitana, no frio cai muito bem. Há um poema, muito engraçado (nos sentidos português e brasileiro, que são diferentes), Formosinha de Elvas, este aí:

"Faz-me por ela morrer
e traz-me desesperado
alguém que dá gosto ver
e de corpo bem talhado,
por quem a morte hei-de ter
como cervo lanceado
que se vai do mundo a perder
da companhia das cervas.

Antes ficasse sandeu
ou me embruxassem com ervas
no dia em que me apareceu
a tal formosinha de Elvas.

Mais a morte me convém,
pois da sensatez me queixo
de quem desejo não tem
de matar o meu desejo
e me parece tão bem
que cada vez que a vejo
me lembra a rosa que vem
saindo por entre as relvas.

Antes ficasse sandeu
ou me embruxassem com ervas
no dia em que me apareceu
a tal formosinha de Elvas."

Bem, é uma forma, bem nobre, de tapar o buraco da minha inspiração, que não vem. E cuidado com as formosinhas e formosinhos que por aí andam.

segunda-feira, abril 11, 2005

vazio

impõe a ti dura realidade
e dizes que tudo brilha
faz derramar as águas
que guardo para navegar
pensamentos que afastam de ti
vê flutuar meus olhos
sem saber a quem olhar
e não estás
pouco entendes meu mar
que dei para ti
e que desaguam em ti

pouco entendes meu mar
faz derramar as aguas
que guardo e não navegas
é imposto, é cobrado o sal
não ter para onde ir
é o que resta
é o que resta

***

Amanhã, o que há de melhor
Mas amanhã, o que há de melhor
É o que há
És o que há
Não haverá poesia
As palavras mudas
Amanhã somos nós

quarta-feira, abril 06, 2005

Manifesto

Porque alguma milésima parte do meu corpo, do meu cérebro, por alguma razão que desconheço, não me deixa escrever.

A inspiração vem de onde?

Amanhã tem mais, ou não.

quarta-feira, março 23, 2005

meditação

não estar ligado a nada. nem palavras nem gestos nem silêncios. estar em si. ler drummond. gostar. ouvir chico e olvidar. querer cozinhar. desistir. sair só pra voltar. esquecer se ainda é dia. se já foi e não voltou. descuidar as janelas. ver o vento derrubar. esperar a chuva. se cansar. não descansar. escrever e apagar. escrever. duvidar. ignorar. acordar. lembrar que não dormiu. esquecer. esquecer.

***
"sentir é estar distraído"
Alberto Caeiro

domingo, março 20, 2005

Esperando Visita

Posted by Hello
Só tu sabes quem és, e que te espero.
Place des Lices, Saint Tropez, 1893 - Signac

Manhã

Por que tudo haverá de acontecer nesta manhã?
Precisamos dar tempo ao tempo
Dar à tarde um motivo pra querer anoitecer
E o que serão das noites se nada as antecederem?
Não terão o peso de dias acabados
Talvez desapareça a escuridão de cidades
E sonhos de meninos só serão bonitos
Vamos deixar os sonhos para a tarde
Mais tarde...

domingo, março 13, 2005

E me parece tão bem

Distorcem-se palavras quando o vento
Sem saber por que disfarça
Teus cabelos noutros olhos
Lamenta não conseguir te alcançar
E chove!

***
Não é definitivo, acho que posso aumentá-lo a um poema de verdade...
Na verdade, chove! E sempre achei que depois de ouvir lamúrias de ventos haveriámos de ouvir e ver as lágrimas... Chorar faz bem, ou melhor, chover é bom!
Estou com a impressão que já é feita a noite, não ouso olhar a janela e me frustrar.

sábado, março 12, 2005

Te encontro no Cabaret

Posted by Hello


Saudades de um tempo que não vivi...

Nem poderia.

É preciso abrir parênteses (cinco grandes meses na minha vida)

sexta-feira, março 11, 2005

Renovar

Com qual alma vens hoje me buscar
Será que dormes enquanto te esqueço
O não-queres
O não-podes
O negar e o não dar por isso
Acho que é falso
Escrevo poemas em vão
Jogo versos sem sentido
E quando então toco tua carne
É quando acordo
Ou não queres e não podes?

quinta-feira, março 10, 2005

Autogénese

Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.

Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou dos açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;

pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e um fórceps de raiva
me arrancou toda
em sangue de mim.

Nascitura estava
sorria e jantava
e um beijo me deste
tu Pedro ou Silvestre
turvo namorado
do verão ou de outono
hibernal afecto
casca azul do sono
sem unhas do feto.

Eu nasci das balas
eu cresci das setas
que em prendas de sala
me foram jogando
os mulheres poetas
eu nasci dos seios
dores que me cresceram
pomos do ciúme
dos que os não morderam;

nasci de me verem
sempre de soslaio
de eu dizer em junho
e eles em maio
de ser como eles
às vezes por fora
mas nunca por dentro

perfil de uma estátua
que não sou de frente.

Nascitura estava
e mais que imperfeita
de ser sorte ou dado
que qualquer mão deita.

Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos;

eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
pelas chaminés
nazis a sair
de te ver passar
de me despedir
de teus olhos tristes
como se existisses.

Nascitura estava
tom de rosa pulcra
eu me declinava
vésper em latim:
impura de todos
gostarem de mim.


Natália Correa

quarta-feira, março 09, 2005

Só porque não gosto

Eu brigo com a poesia:

No rosto da tua vaidade
Vi aos passos meu destino
E bateu-me uma saudade
E nada mais faz sentido
A amargura vem chegando
A alegria vai partindo

... rasgue a página, desligue o monitor.